O céu aberto, a casa, o sertão e um ponto de vista

Alejandra Muñoz¹

Uma das linhas de investigação da arte contemporânea é a realização de propostas que envolvem ações com comunidades em que a ideia de arte tem escassa relevância ou nula influência na vida das pessoas. É nessa perspectiva que Maristela Ribeiro tem desenvolvido vários dos seus trabalhos, muitas vezes associando instalações e fotografia como linguagens expressivas, mediante operações de manipulação de imagem, deslocamento de referências e composições colaborativas.





O atual projeto Casas do Sertão abrange uma série de ações cujo propósito é provocar a percepção dos moradores de Morrinhos, povoado de distrito de Jaguara no município de Feira de Santana, Bahia. A proposta foi aprovada pelo Programa Nacional de Cultura do Banco do Nordeste (BNB), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e é parte do projeto de Doutorado da artista no Programa de Pós-Gradação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia (PPGAV/UFBA).

Um dos aspectos mais fortes de Morrinhos e da comunidade local, que não chega a 400 habitantes, é a escala das relações coletivas. A pequena população tem como lazer principal a televisão em casa. O único equipamento coletivo existente é a Escola Municipal Antônio Carneiro. Não há teatro, não há cinema, não há estádio, não há auditório e, muito menos, museu, galeria, clube ou outro equipamento esportivo – aliás, como em mais de 80% dos municípios brasileiros. Os acontecimentos de congregação coletiva de Morrinhos acontecem na única praça do povoado, que carece de mobiliário urbano adequado ou versátil para usos recreativos (palco móvel, coreto, bancos etc).

Em contato com a comunidade, ao longo do ano de 2013, Maristela e sua equipe desenvolveram estratégias de aproximação e convivência por meio de oficinas e atividades coletivas. Entre maio e julho, aconteceu a Oficina de Mosaico, em que crianças, jovens e adultos realizaram um painel de mosaico de quase 45m² na parede lateral da Escola Municipal Antônio Carneiro. Na primavera, foi realizada uma estratégia educativa de sensibilização principalmente dirigida aos jovens, a Oficina de Fotografia, com a participação dos fotógrafos Edson Machado e George Lima — cabe salientar que a equipe não encontrou nenhuma fotografia impressa na comunidade, apenas imagens digitais recentes capturadas por poucos aparelhos celulares habilitados no povoado. Em paralelo, foi produzido um Audiovisual com o objetivo inicial de registrar as ações do projeto, mas que se foi transformando em filme de curta-metragem — criado pelos documentaristas Johny Guimarães e Volney Menezes — sobre Morrinhos, seus artefatos e traços culturais. Finalmente, como desdobramento das atividades anteriores, em janeiro de 2014 começou a ser exibida a Sessão de Cinema, com participação da maioria da comunidade (cerca de 250 pessoas) reunida na pequena praça local onde foram projetadas as fotografias e os vídeos registrados nas oficinas. Assim, todas essas atividades foram instâncias de acercamento e conhecimento essenciais para a artista pensar o tipo de intervenção que faria em um segundo momento: a exposição Casas do sertão a céu aberto sob um ponto de vista.

A ideia inicial do projeto era fazer uma intervenção na fachada de algumas casas que, com baixo investimento financeiro — através de técnicas como pintura, adesivos, stencils ou aplicações de relevo, entre outras — levasse a Morrinhos uma melhoria construtiva, um elemento de afirmação cultural e de reforço da autoestima dos proprietários dos imóveis. Porém, por parte dos moradores houve o temor de que tal intervenção, modestíssima em termos materiais, mas significativa em termos simbólicos, pudesse comprometer um futuro investimento do governo federal no povoado através do programa de habitação popular “Minha Casa Minha Vida”. A possibilidade de que uma alteração simples da fachada, mediante intervenção artística, pudesse criar a ideia equivocada de “prosperidade” dos moradores das precárias moradias foi suficiente motivo de apreensão dos moradores e de reversão da perspectiva inicial da artista. O interior das modestas casas continuaria nas mesmas condições de precariedade de abrigo elementar, isto é, sem saneamento básico, sem água encanada, sem qualidade construtiva, e com paredes de adobe e chão de terra batida. As casas seriam afetadas menos na sua materialidade e mais no aspecto significativo como meio de acesso dos moradores ao que, para os burocratas de plantão dos projetos de gabinete das instâncias federais, talvez, nunca seria admissível: a arte. Entendo que só esse fato já constitui um gesto de grande potência artística, isto é, a reação ao direito à Arte em nome de uma expectativa de suposto recurso que, possivelmente, não mudaria a situação da maior parte das pessoas do povoado.

Portanto, a relação entre a imagem da fachada e o conteúdo real das casas já contém uma semente poderosa para uma reflexão que me parece importante e que conjuga pelo menos três níveis inter-relacionados. Em primeiro lugar, a entrelinha de um modus operandi tácito dos poderes públicos a partir da imposição de alguma coisa (no caso, um conjunto de moradias) e não mediante o diálogo com a população sobre os tipos de soluções para as carências (no caso, um conjunto associado a um equipamento cultural simples que reforce os laços de vizinhança e comunidade). Um programa como o “Minha Casa Minha Vida” parte da ideia de que habitação popular é apenas construção, e não arquitetura, portanto, não surpreende que os conjuntos sejam exatamente iguais em qualquer lugar, isto é, a ubiquidade como uma condição essencial da ação federal e, consequentemente, uma cegueira oficial proposital diante das especificidades das comunidades às quais supostamente se estão encaminhando as ações. Em segundo lugar, o pressuposto inconsciente, por parte dos moradores, de que a condição de precariedade crônica é a única perspectiva de reivindicação coletiva. Nesse entendimento, o direito de cidadania inexiste enquanto se afirma a ideia correlata de que os valores simbólicos são menos importantes que os valores materiais. Assim, pareceria que almejar algo mais que um teto não estaria nos horizontes das pessoas de Morrinhos. Por último, pode-se constatar a relevância da imagem na formação do juízo de valor, isto é, o poder da imagem enquanto aparência, em detrimento de qualquer prospecção de conteúdo em uma situação como esta. Para os moradores do povoado como para a maioria das pessoas, a fachada é a imagem da casa e da condição de vida do morador, então, além do exposto antes na perspectiva no plano federal sobre o “risco” das aparências, no plano pessoal, o que acontecesse na fachada das casas com a intervenção artística já seria uma ação de reconhecimento de um valor que, para eles, não havia antes. Nesse contexto, a artista passa a investigar uma possível lógica de desaparecimento da materialidade das fachadas, de negação do interior invisível (ou que parece não se querer ver!) e de deslocamento da paisagem existente num processo de autorreferência. De modo mais abrangente, a intervenção expõe delicadamente a ferida: o desaparecimento da autoestima, a negação do direito à cidadania, a mudança pelo deslocamento do “ponto de vista” cotidiano. A proposta, então, abrange dez casas nas quais a fachada existente é apenas pintada de branco e utilizada como suporte para uma fotografia em escala real instalada por período de algumas horas ou poucos dias. Quatro elementos serão fundamentais para a composição da artista: o céu aberto como espaço expositivo, o sertão como lugar, a casa como problema e um ponto de vista como estratégia.

A proposta se apropria da lógica do outdoor subvertendo a função publicitária para encaminhar outro tipo de mensagem: mediante a simples instalação de uma foto da paisagem local desde um ponto de referência conhecido por todos, mas diferente da perspectiva habitual do local, a fachada como imagem desaparece, junto com toda a percepção da casa, enquanto outra imagem cria uma ilusão de ponto de fuga, de acesso pelo olhar para outra profundidade que não é mais a da modesta moradia. É a dimensão da natureza, mesmo antropizada, prevalecendo às acanhadas perspectivas construtivas que se projetam para aquela região. É a perenidade do lugar transcendendo ao provisório das ações. É o valor daquela profundidade visual que a artista revela indo além das acanhadas perspectivas de quem pode, de fato, fazer muitíssimo mais por aquelas pessoas, mas que, em nome dos conchavos partidários de turno, nunca farão nada a não ser por interesse eleitoreiro sazonal. Assim, a intervenção torna-se um exercício de advertência sobre a dignidade daquele lugar, mesmo nas suas limitações e carências, em suas expectativas e em suas projeções de futuridade.

As imagens extraem sua veemência desse deslocamento de lugar para outro lugar subvertido. O exercício de uma camada retiniana (a foto) para uma camada de acolhimento (a fachada). Assim, a foto exposta na escala da própria captura e no mesmo contexto que foi tomada adquire uma dimensão metalinguística: a paisagem aberta que se transforma em outra paisagem aberta. O instante da captura que reforça sua fugacidade na nova situação provisória. A ilusão de subversão que não se consuma: os precários interiores que ninguém vê invisibilizados pelos horizontes que ninguém se pergunta aonde conduzem. Maristela cria antiespelhos para um povoado onde não há nenhuma fotografia analógica impressa, onde apenas a virtualidade parece estar chegando a conta-gotas, onde a maioria tem como único registro de si a foto da carteira de identidade.

O impulso para a criação artística não tem de ser estético. Pode ser visceral e, em alguns casos, é urgente que assim seja! Mas a arte é uma forma de conhecimento e pode ser uma plataforma de transformação de contextos, sejam ideológicos, materiais ou simbólicos. Em Morrinhos, a arte de Maristela não é materialidade, mas uma alternativa ante o embrutecimento predominante.

1 Alejandra Hernández Muñoz é arquiteta, mestre em Desenho Urbano e doutora em Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAU/UFBA). É professora permanente de História da Arte da Escola de Belas Artes (EBA/UFBA). Atua como crítica e curadora, participa de júris e comitês de seleção artística. Integrou a equipe curatorial do Programa Rumos Artes Visuais 2011-2013 do Instituto Itaú Cultural (São Paulo) e atualmente é curadora-adjunta da 3ª Bienal da Bahia.


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