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Essa Mobilidade que transforma — Conversa com Marcelo Rezende, diretor do Museu de Arte Moderna da Bahia - MAM/BA


Marcelo RezendeQual a primeira casa que aparece em sua memória como um elemento emocional, parte de sua personalidade?

Maristela Ribeiro — A casa da minha avó Mari em Ipirá, terra natal da minha mãe.

M.RVocê poderia descrever as razões, o que havia nesse espaço que ajudou a compor sua sensibilidade? Estamos falando aqui de questões espaciais ou emocionais?

M.Rro — As duas se misturam. A luminosidade da casa, o aspecto arejado e fresco, o piso de cerâmica que depois de lavado exalava um cheiro agradável de limpeza, o fogão à lenha que era utilizado de vez em quando para comidas especiais, a água retirada do pote e servida em moringa, a brisa das árvores da praça acolhedora e sombreada localizada em frente a casa, o clima festivo dos encontros familiares nas férias...

M.REm quais lugares você já morou? E de que modo isso influenciou o modo como você imagina ser uma moradia e uma comunidade?

M.Rro — Feira de Santana, Itaberaba, Salvador, Ruy Barbosa, Fazenda Bonfim (próximo a Itaberaba), Lavras-MG, Instituto Sacatar... A diversidade das minhas moradas talvez tenha contribuído para a construção imaginária de meios para a criação de um lar. A moradia para mim tem estreita relação com um lar. Uma comunidade composta de moradias seria um lugar com vizinhança onde se estabelecem trocas e relações. Forma-se uma constelação com os referenciais de cada um.

M.RVocê fala aqui sobre comunidade, algo muito presente em seu projeto. Poderia descrever de que modo construiu uma relação com os moradores das casas que vemos em sua pesquisa?

M.Rro — Procurei estabelecer uma relação de confiança, algo que seria imprescindível para a realização de todo o projeto. Utilizei cuidadosamente estratégias de aproximação por meio de oficinas de arte e de eventos artísticos nos quais busquei levantar, a partir das narrativas dos próprios moradores, conteúdos que compõem sua história, seus mitos, suas lendas e o que há de mais particular e que caracteriza essa comunidade. Para esta finalidade, utilizei uma oficina de mosaico, com o objetivo de proporcionar um aprendizado que, além da experiência artística, fosse também capaz de se reverter posteriormente em renda. Ao perceber que não havia imagens impressas das pessoas e do lugar, ofereci uma oficina de fotografia com a participação de um fotógrafo profissional, onde juntos formamos um banco de dados com mais de 8 mil fotos. Esse arquivo foi apresentado em duas ocasiões à comunidade em projeção na única praça pública, com o título “Cinema de Morrinhos”. Numa era pós-fotográfica foi uma experiência singular observar essas pessoas admiradas em ver suas próprias imagens ali refletidas. Pude contar também, na realização do projeto, com a participação de outros artistas, além de uma socióloga e um médico veterinário, que são “extensionistas” rurais experientes e conhecem de perto as dificuldades enfrentadas na área rural.

M.RO quanto esse trabalho, a partir de uma experiência comunitária, é também parte do projeto?

M.Rro — Acredito que o trabalho é o conjunto. Sem essas pessoas e esse lugar o trabalho não existiria. A síntese só pode ser pensada a partir das relações estabelecidas. O trabalho em si extrapola completamente os limites das fotos ou imagens, o trabalho são as pessoas, as relações que foram constituídas ao longo desse período, é o contato, o aperto de mão, o clima, o ambiente, a luz intensa do sertão, o calor escaldante, a poeira, o silêncio, o canto dos pássaros, a melodia formada pela brisa e o farfalhar das árvores, a alegria ruidosa das crianças soltas, brincando, empinando pipa, jogando bola; é a lata d’água na cabeça de mulheres que vão e voltam trazendo água da fonte... A iconografia se completa a partir da minha interação com as pessoas.

M.R O que significa para você ocupar emocionalmente um espaço?

M.Rro — Significa criar laços para torná-lo familiar. Em outras palavras, criar identidade. Ver refletido no espaço a minha cara.

M.RE de que forma esse espaço se reflete na cara do outro, a partir da experiência criada por você?

M.Rro — Morrinhos é uma comunidade que demonstra a decadência do modelo tradicional da pecuária explorada no seu entorno. Foi ampliada a partir da chegada de muitos trabalhadores demitidos e expulsos das grandes fazendas ao redor, pela nova geração de proprietários que temia os encargos com as novas leis trabalhistas. Muitos tiveram os seus direitos negados de forma total ou parcial.

Tendo contato com a realidade local, pude observar de perto a condição de vida de algumas pessoas que sofreram e ainda sofrem com o resultado dessa migração imposta. Apesar da proximidade com Feira de Santana, a segunda maior cidade do interior nordestino, falta tudo em Morrinhos. Faltam os meios de produção, entre estes, terra e conhecimento, além da assistência médica, saneamento básico, segurança, e, sobretudo autoestima.

Busquei com as intervenções artísticas produzir uma alteração na percepção do outro, para que, a partir do espaço real e do espaço concebido, por uma fração de segundo que fosse, pudesse abrir a possibilidade para uma reflexão. É uma metáfora para falar do esquecimento, da ausência, da inexistência de pessoas pobres, para os poderes constituídos. É uma metáfora que pode lançar a discussão sobre o modo de vida de uma população necessitada e completamente distante de tudo que uma sociedade moderna produz para o benefício de todos e que lhe são negados pelo sistema vigente.

M.RVocê acredita que seu trabalho apenas documenta essa situação social ou é também capaz de interferir?

M.Rro — Sou o resultado de tudo que li, ouvi, assisti e apreciei esteticamente, e certamente tudo isso influenciou consideravelmente o meu modo de ser. Acredito perfeitamente no poder da arte e na sua capacidade de transformação, senão do mundo, pelo menos de uma parte da vida das pessoas. Mesmo que seja uma pequena alteração, mas a arte tem esse potencial e essa aptidão de tirar a pessoa do lugar em que se encontra, e é exatamente essa mobilidade que transforma, modifica, altera. Emocionalmente falando, na maioria das vezes o indivíduo não consegue mais voltar para o mesmo ponto em que estava. Já vi isso na prática.

 

 

Casas do Sertão — Entrevista com Lígia Motta


Lígia MottaO que lhe levou a criar o projeto “Casas do Sertão”?

Maristela Ribeiro — Em 2007, durante uma residência artística no Instituto Sacatar, desenvolvi um projeto denominado “Territórios Invisíveis” cujo tema abordava a “invisibilidade social”. No decorrer do trabalho, entrevistei várias pessoas que exerciam serviços diversos e que não eram reconhecidas nem valorizadas socialmente pelo seu trabalho. Ali encontrei uma coisa interessante: durante uma entrevista com uma gari de Itaparica, me deparei com uma contradição instigante em que ela comparava a casa com o corpo. “A minha casa é simples como eu sou, mas não se parece comigo porque eu queria que ela fosse melhor.” No decorrer dessa fala, a casa e o corpo apareciam várias vezes como uma coisa só. Naquele episódio, observei que o espaço arquitetônico aparecia como uma extensão do sujeito, que ora refletia, ora introjetava. Acho que foi a partir dessa provocação...
O tema da moradia passou a ser para mim objeto de variados estudos e pesquisas em diferentes aspectos e vertentes. Contudo, me pareceu que qualquer que fosse a abordagem adotada seria convergente a ideia de que a casa é lugar de revelação e constituição da vida. Sinônimo de abrigo, ambiente de repouso, mais que um espaço físico, a casa é o lugar de interioridade, que garante a distinção entre o público e o privado. Ela possibilita ao homem criar raízes na vida e se constitui como elemento de estabilidade.  Sem esse abrigo, o homem torna-se errante.

L.MPor que desenvolver esse trabalho em uma área rural?

M.R — Em alguns momentos, necessito de quietude em meio às pessoas simples, longe dos ruídos urbanos e da seara contemporânea.

L.M Por que o interesse por questões de ordem social?

M.R — Nasci em Feira de Santana em uma década (de 1960) marcada por conflitos sociais, tensões políticas e preocupações com a paz mundial e os ideais de liberdade. Em meio às ditaduras militares daquele período, surgiram os movimentos da contracultura, como os hippies, o feminismo e a revolução sexual. Desde muito cedo acompanhei os movimentos de contestação política, social e cultural, das denominadas “minorias” que lutavam pelos seus direitos. Os anos 60 foram revolucionários nos costumes, na moda, nas artes. Acho que recebi a influência desse período de renovação do comportamento, de uma geração que não se conformava com as normas vigentes e contestava os parâmetros estabelecidos.

Por outro lado, sempre me impressionou a forte pobreza existente no estado da Bahia, principalmente na Região Semiárida e no Agreste, onde está localizado o município de Feira de Santana. A gestão das políticas públicas que se estabeleceu nos estados do Nordeste brasileiro se manteve ao longo do tempo sob o domínio de uma pequena parcela de atores, em detrimento da socialização da população mais numerosa e necessitada e do seu acesso aos direitos.
Parece-me relevante, como artista, observar e questionar esta realidade na tentativa de expressá-la de outro modo. Acredito na arte como instrumento de intervenção cultural com amplo poder transformador.

L.MPor que Morrinhos?

M.R — Imagino que há de se encontrar no caminho a resposta para a escolha de um lugar. Ainda estou no caminho... não sei. Mas quando passei pela primeira vez em Morrinhos me senti atraída pelo lugar. Decidi que faria um trabalho artístico por ali. Escrevi o projeto “Casas do Sertão” em pouquíssimo tempo e o encaminhei para participar de uma concorrência nacional através de edital público.

O projeto foi aprovado pelo Programa Nacional de Cultura do Banco do Nordeste (BNB), copatrocinado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e em março de 2013 dei início à construção poética do projeto. Pouco tempo depois, esse mesmo projeto foi aprovado pelo PPGAV2 da Universidade Federal da Bahia como parte integrante do meu programa de doutorado3.

L.MQual era o objetivo do projeto?

M.R — Buscando a abertura de diálogo entre as artes visuais e outras áreas do conhecimento, propus desenvolver, através desse projeto, uma série de ações com a finalidade de provocar a percepção dos indivíduos desse pequeno povoado. Visava favorecer a ampliação do repertório estético com aproximações que tangenciam questões de cunho social e que estimulam a reflexão sobre a vida e o cotidiano.

Como eu disse antes, os temas que contornam questões de ordem social me importam. Foi assim que concebi Lata D’Água na Cabeça, Fendas e Frestas, Territórios Invisíveis, Os Modernos, e tantos outros trabalhos...

O ponto culminante do projeto seria realizar intervenções artísticas nas fachadas das casas que seriam selecionadas, tentando conferir novos significados a partir do conjunto de caracteres que fossem identificados em Morrinhos.

L.MQuais as ações que foram realizadas antes da Intervenção Artística nas fachadas das casas?

M.R — Propus, como estratégia de aproximação, realizar oficinas de arte e alguns eventos artísticos. Na apresentação do projeto e da equipe de trabalho4 à Comunidade, sugeri a criação de um espaço de intercâmbio de ideias e troca de experiências, através da prática coletiva. Esta estratégia visava ao aprendizado de uma técnica artística, de modo a estabelecer um contexto em que as pessoas pudessem encontrar meios para criar e construir elementos nas suas próprias casas depois do projeto realizado, contribuindo inclusive para a geração de trabalho e renda de forma sustentável.

Optaram pela Oficina de Mosaico, que foi realizada nos meses de maio, junho e julho com crianças, jovens e adultos. Nessa oficina, além da realização do painel de mosaico de aproximadamente 45 m2 na parede lateral da Escola Municipal Antônio Carneiro, foi dado início às pesquisas de campo e ao levantamento e catalogação dos dados com possibilidade de utilização posterior.

A Oficina de Fotografia, decorrente do interesse manifestado pelos jovens estudantes de Morrinhos, não constava no projeto, porém foi concebida, com a participação dos fotógrafos Edson Machado e George Lima, como uma estratégia educativa de sensibilização e coordenada por Edson durante os meses de outubro e novembro. É importante salientar que não havia fotografias impressas na comunidade. Só encontramos imagens digitais capturadas recentemente pelos poucos aparelhos celulares habilitados.

A Sessão de Cinema de Morrinhos, desdobramento das atividades anteriores, começou a ser exibida em janeiro de 2014, no início de uma noite agradável de verão, com céu estrelado e uma brisa afável. Esse evento também extrapolou a programação, entretanto teve a participação da maioria da comunidade reunida em praça pública (aproximadamente 250 pessoas), onde foram projetadas as fotografias e os vídeos com a participação dos moradores que foram registrados durante todo o percurso do projeto.

A proposta para a criação de um audiovisual tinha como objetivo fazer um registro das ações decorrentes do projeto. Todavia, o conteúdo se ampliou durante o processo e foi produzido um filme de curta-metragem, criado pelos documentaristas Johny Guimarães e Volney Menezes, cujo teor lança luzes sobre Morrinhos, com seus artefatos e traços culturais.

L.MQual a ideia para a Intervenção Artística nas fachadas das casas?

M.R — A ideia central era buscar uma aproximação com o lugar para poder extrair dali, na convivência com o espírito local, uma síntese que fosse o resultado da reflexão sobre a condição de vida daquelas pessoas. Procurava traçar metaforicamente um paralelo entre essa condição e as linguagens visuais contemporâneas.
Em resumo me propus a tentar alterar a percepção das pessoas. As casas deveriam desaparecer. Sumir. Sair daquele cenário. Reapareceriam depois de outra forma. Com outra aparência. Sobre a fachada das casas seriam inseridas imagens próprias da região, de forma que, à primeira vista, causasse a impressão de ausência. Essa alteração de consciência do observador me interessou intensamente. É uma metáfora para o desaparecimento das pessoas.

Foi em comum acordo com os moradores de Morrinhos que dei início aos preparativos para transformar a aparência das casas que passariam pela intervenção, o que poderia durar uma hora, um dia, um mês, um ano ou mais... Dependendo apenas do interesse de cada um dos envolvidos, pois as imagens poderiam ser facilmente removidas.
É importante ressaltar que, durante a realização da primeira etapa do projeto, os moradores foram cadastrados no programa de governo “Minha Casa Minha Vida Rural”. Esse fato inviabilizava qualquer ação de caráter mais permanente, portanto optei pela realização de um trabalho com características transitórias, de cunho efêmero.

L.MPor que escolheu trabalhar com o que chamou de “imagens imprevistas deslocadas”?

M.R — Foi uma forma que encontrei de abrir uma questão. Escolhi a paisagem local como referência. Busquei fazer o deslocamento de imagens que fazem parte do repertório visual local.

Talvez o contato com Dona Luíza tenha favorecido o aparecimento da síntese que eu buscava. Rezadeira antiga, trabalhadora rural aposentada, de jeito doce e trato simples, Dona Luíza, aos 80 anos, é a proprietária da casa de taipa das janelas verdes, com chão batido, compreendida por cômodos minúsculos separados por cortinas de pano, que fica localizada por ironia na emblemática Rua das Flores.

É compreensível o meu interesse pelo modo de vida de Dona Luíza. Com apenas três blocos de construção de cerâmica superpostos de cada lado e uma tábua comprida solta apoiada nas extremidades pelos blocos, ela criou um banco que fica do lado de fora da sua casa, encostado na parede da entrada. Segundo ela, para o conforto dos visitantes e a distração de todos que acompanham o movimento da Rua das Flores. Meninos se viram pra lá e pra cá o tempo todo, jogam bola, pulam e brincam. Mulheres descem carregando lenha e sobem com latas d’água na cabeça. Homens puxam animais, cavalos, jegues e motos. Galinhas, galos, pintos e cachorros circulam livremente.

Não há sanitário na casa de Dona Luíza. As necessidades fisiológicas são satisfeitas no mato por detrás da casa. Não há água encanada. O banho é de balde, tomado no chão batido da pequena cozinha, composta por um acanhado fogão de lenha, um armário de três portas, uma prateleira com poucos mantimentos, três ou quatro panelas pretas pela fuligem e fumaça do borralho, um bule, uma garrafa térmica, um pote d’água, algumas canecas, meia dúzia de talheres e pratos.

Em apenas um quarto de aproximadamente 9 m2, dormem a avó, as netas e o medo que as acompanha em dias de chuva com trovoada, nas três camas com colchão de capim e dois mosquiteiros. Medo de a casa cair, segundo elas. As paredes de taipa são forradas com tecidos de chita com grandes flores azuis. Estas são as únicas flores que vislumbramos na Rua das Flores. No canto do quarto, podem-se ver duas malas e uma sacola, onde possivelmente são guardadas as roupas e os pertences individuais.
A escuridão causada pela ausência de janelas no interior da casa de Dona Luíza é amenizada pelas frestas dos caibros irregulares do telhado e das varas das paredes de taipa, que não conseguem vedar completamente o ambiente. Entra uma luz tênue que contribui para criar uma atmosfera de penumbra. Nestas vagas, sobretudo, entra água em dias de chuva e tempestades.

A sala diminuta, composta por um sofá, uma cadeira plástica infantil, uma mesinha de 60 cm x 80 cm e uma televisão de 14 polegadas, é o espaço de convivência da família. É também o lugar de pouso onde costumam dormir outros familiares que aparecem de vez em quando. Os jovens assistem TV e Dona Luíza passa horas cerzindo as roupas puídas. Além dela, vivem ali uma neta de 20 anos, outra de 14 anos e a bisnetinha de 4 anos, filha da mais velha, cujo companheiro está sempre ausente, em busca de trabalho.

A seca assola a região frequentemente, a falta d’água é constante, mas a Rua das Flores prossegue a mesma. Nos finais de tarde, quando chega a brisa, ouvem-se casos dos antigos como Maria Rocha, Ludugero e Caetano, que em uma briga perdeu a mão esquerda que se encontra enterrada junto à Cruz da praça em frente à capela. Aparecem também histórias de assombração como a da “mulher da trouxa” que transforma em estátua o curioso que olha para ela, ou a da “carroça” que vagueia pelos ares com um vulto coberto, na véspera de uma tragédia, fazendo zoada, circulando enlouquecida e arrastando corrente nas madrugadas escuras de ruas vazias e mentes cheias de imaginação.

A Rua das Flores é assim, movimentada em determinados horários do dia. Em outros, depois do almoço, por exemplo, no calor sufocante da maioria dos meses do ano, a Rua das Flores silencia, dorme, se acalma. Não se ouve nem se vê ninguém. Todos se encontram recolhidos.

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