Intervenções

Larissa Min¹

Em uma tarde quente de outubro, a artista-pesquisadora Maristela Ribeiro em companhia do seu marido Heitor se dirigem a  uma comunidade rural através de uma estrada vazia do interior — a terra parece uma casca fina em cima de um manto de rocha. Geralmente, no meio do verão essa terra arde queimada, cor de cinza, mas nesse dia se vê da janela do carro que ela se abre nua, rala, surpreendentemente verde. O inverno fora úmido — atípico, em uma terra consumida por ciclos periódicos de seca.



Na condição de uma artista residente do Instituto Sacatar, Maristela Ribeiro me leva para visitar Morrinhos, um pequeno povoado no meio de fazendas da caatinga. Existem 90 famílias que vivem em um pedaço de terra quadrado de pequenas casas, uma adjacente à outra. Algumas pintadas, outras nuas, mas em nenhuma delas se encontram um jardim ou quintal. O povo de Morrinhos não possui terra – o pouco que cultivam pertence aos proprietários das grandes fazendas agrícolas privadas do entorno, e, a alguns centímetros do fundo da casa, cercas de arame farpado inexoravelmente se erguem, demarcando a fronteira entre o povo e as terras do entorno. Dentro de linhas visíveis e invisíveis, eles são, portanto, segregados, excluídos da participação no manejo de uma terra que — mesmo árida — nunca podem ocupar totalmente ou chamar de sua.

É neste contexto que o projeto “Casas do Sertão” se manifesta de forma mais surpreendente. Em sua conformação final, é uma pausa: não obstante as casas feitas de material simples, em decaimento, sob a pressão de exíguo espaço à disposição da comunidade, atada por um legado histórico colonial, a intervenção de Maristela os reconfigura.  Sobrepondo as fachadas humildes com imagens deliberadamente escolhidas, as casas são transformadas em janelas que se abrem às vastas paisagens ao redor, esculpindo vias nos espaços de sonhos e anseios de que esses moradores foram despojados. Podem as paredes de uma humilde casa dissolver-se em novos caminhos, levando-nos a novas perspectivas que redefinem o sentido de ser e de pertencer, individual e comunitariamente? Através da arte, esses espaços físicos tornam-se locais onde os espaços cognitivos e emocionais são redesenhados e a imaginação se torna mais uma vez possível. Como é que o nosso espaço físico define nosso ser, nosso sentido de ser em conexão com esse espaço – e será que esse relacionamento pode ser transformado?

Talvez a Rua das Flores em Morrinhos seja assim chamada não apenas como uma ironia, mas como uma afirmação de uma simples vontade: a tentativa de redefinir a relação de seres humanos com seu lugar, e transformá-lo em seu lar. Apesar de não terem jardins ou quintais, moradores cavam pequenos buraquinhos em frente de suas casas, onde plantas minúsculas formam raízes, brotam, e finalmente florescem embaixo de varais.

Naquela tarde quente, enquanto continuávamos nossa caminhada, pessoas saíram de suas casas para nos receber, entrelaçaram seus braços ao redor de Maristela e nos seguiram, enquanto meninos orbitavam em torno de nós em suas bicicletas enferrujadas mal escondendo sua cinética alegria. E assim chegamos em frente da casa de Dona Luíza — a porta se abrindo aos seus três quartos pequenos, escuros, sem janelas. Aguardando em sua porta, um braço embalando o outro sob o cotovelo, Dona Luíza sorri e fica ao lado acolhendo-nos. Enquanto nós ficamos na sala da frente, onde seus netos se acumulam num sofá puído, ela hesita por apenas um momento antes de tomar a decisão de permitir a nossa entrada no resto de sua casa: um quarto minúsculo que funciona como sala, outro no meio com uma cama de solteiro, e um último onde se encontram um fogo de lenha e baldes de água marrom que são usados para lavar e cozinhar. Enquanto fala conosco naquele último quarto, ela nos dá vislumbres de sua pobreza e humildade, da vulnerabilidade do seu estado, e de sua confiança e coragem em permitir que sua casa e ela mesma sejam vistas. E nesse gesto de generosidade total, ela nos dá não só um vislumbre de sua vida, mas consegue criar um verdadeiro sentido de “casa”. Mesmo que paredes de terra de sua casa sem janelas sejam humildes, por meio de suas ações ela também abre espaços que transformam as paredes em um elemento capaz de transcender o espaço físico em direção a um sentido emocional de lar.

1 Larissa Min é uma escritora nascida em Curitiba que mora nos EUA. Atualmente ela se encontra no Brasil para realizar dois projetos: Breaking English, um relato não-ficcional da dupla migração de sua família (da Coréia do Sul para o Brasil e mais tarde para os EUA) como uma forma de analisar as experiências de migração global, deslocamento e lembrança; e Wondering Gondwana, uma narrativa que combina dois dos últimos lugares selvagens do mundo - a Antártida e a Amazônia - para falar sobre o desenvolvimento, conservação, justiça social e mudança climática global. Em apoio a esses projetos ela foi premiada com uma bolsa Fulbright do governo americano, bolsas-subsídios da Fundação Hedgebrook em Washington e do Instituto SACATAR na Bahia, e premiada pela Fundação Nacional de Ciência dos EUA para viajar à Antártida por 11 semanas como uma artista-escritora. Saiba mais em www.breakingenglish.org.

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